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Que Horas Ela Volta?

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Filme da Semana The Movie Club

Que Horas Ela Volta?

O filme “Que Horas Elas Volta?”, que tem direção e roteiro de Anna Muylaert, conta a história de Val. Lançado em 27 de agosto de 2015, a história acompanha Val, uma dentre os milhões de nordestinos que  deixaram sua região em busca de melhores condições de vida para eles e suas famílias. Deixando sua filha pequena, Jéssica, aos cuidados de parentes em sua cidade natal no interior de Pernambuco, Val começa a trabalhar na casa de uma influente família de classe média alta em São Paulo. Seu papel transcende a mera função de cuidar da casa, ela também assume um papel de segunda mãe para Fabinho, o filho de sua patroa.

Passados vários anos, Val recebe uma ligação de Jéssica informando que está se mudando para a capital de São Paulo para fazer vestibular. Neste momento do filme, tanto Jéssica quanto Fabinho já são jovens adultos. Enquanto Jéssica cresceu distante da presença da mãe, Fabinho foi criado com afeto e atenção por parte da empregada doméstica.

O reencontro entre mãe e filha representa uma revolução social dentro da casa – mais adiante vou retomar esse assunto. A diretora-roteirista, com sua habilidade única, retrata esse processo de forma esplêndida. Lógico que todo o elenco atuou muito bem. Lourenço Mutarelli, que interpreta o calado e apagado Carlos, assim como Michel Joelsas, no papel do mimado Fabinho, vão ter de me desculpar. Mas este filme pertence às três mulheres que incorporaram suas personagens de maneira impecável, entregando-nos atuações maravilhosas. A patroa Barbara (Karine Teles), a destemida Jéssica (Camila Márdila) e a incansável Val (Regina Casé) transformam “Que Horas Ela Volta?” em uma verdadeira obra de arte. Especialmente Regina Casé, que demonstra a força de uma atriz incrivelmente competente e experiente. A talentosa Karine Teles, por sua vez, prova ser uma das maiores atrizes de sua geração.

Em pé: Camila Márdila, Regina Casé, Anna Muylaert e Michel Joelsas. Sentados: Lourenço Mutarelli e Karine Teles.

Jéssica é bem recebida pelos patrões de sua mãe. Eles estão de braços abertos. Porém, a boa recepção funciona até Jéssica começar a questionar os protocolos sociais estabelecidos. Val vive desses protocolos e já se acostumou com eles; para ela, tudo aquilo é normal e faz parte da essência das relações sociais. No entanto, para Jéssica, não é assim. Neste ponto da narrativa há uma crescente nos conflitos e este é o ponto-chave do filme.

O filme tem como objetivo mostrar que a sociedade muda e que muitas pessoas apresentam resistências em aceitar essas mudanças. O filme não representa somente o que acontece na residência dos patrões de Val, mas num Brasil que ainda está aprendendo a lidar com tais transformações sociais.

Para além do filme, o personagem Val serve como uma representação da parcela da população nordestina que migrou para a região sudeste do país sem qualificação. É crucial reconhecer que essa migração teve início de maneira mais sistemática a partir dos anos 1930, quando o sudeste do Brasil começou a vivenciar um intenso processo de industrialização. Esse processo persistiu nas décadas seguintes e se intensificou na década de 1970, quando o governo militar brasileiro implementou o Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL) em 1975 para atender à demanda por veículos movidos a álcool. Isso levou a um aumento na produção de cana-de-açúcar, que estava em declínio, resultando na expulsão de pequenos agricultores que cultivavam produtos alimentícios em terras de usinas de cana.

O êxodo rural gerou a migração de camponeses tanto para as capitais dos estados do nordeste, como para outras grandes cidades da região, mas também para o sudeste do país. A migração, “filha do PROÁLCOOL”, persistiu até os anos 1990. E muito provavelmente a personagem Val é parte resultante deste período migratório.

Val vive na residência onde trabalha, apesar das folgas que têm. Porém o conceito de ter um pequeno espaço para a moradia de empregados domésticos nas casas dos patrões já não cabe nos dias atuais. Esta “mini senzala” tem o nome de “dependência de empregada”.

Se Val deixou Pernambuco em um momento específico da história e aceitou aquela condição, Jéssica possui uma mentalidade diferente. Jéssica não se deslocou para São Paulo com o propósito de ser empregada doméstica, mas sim para tentar ingressar em uma universidade renomada. Entretanto, isso não significou a diminuição da xenofobia e do preconceito regional contra nordestinos.

Se antes, cursos superiores eram privilégios de membros das elites e das classes mais altas, atualmente, principalmente nas últimas duas décadas, com a implementação de um sistema de cotas sociais, bolsas e incentivos, muitos filhos de empregadas domésticas puderam concluir os estudos e receber diplomas universitários.

Outra crítica relevante do filme diz respeito às relações de trabalho entre patrões e empregados domésticos. Se, por muito tempo, a “dependência de empregada” foi comum, fazendo parte das edificações mais antigas, hoje os empregados domésticos têm direitos trabalhistas. Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) permite que adaptações de uma nova realidade sejam adicionadas na Constituição Federal do Brasil de 1988. E a PEC das Domésticas, de 2013, durante o governo Dilma Rousseff, passou a prever igualdade de direitos trabalhistas entre domésticas e os demais trabalhadores, entre eles o salário-maternidade, auxílio-doença, auxílio acidente de trabalho, férias remuneradas, pensão por morte e aposentadoria por invalidez, idade e tempo de contribuição por tempo de serviço. Ela também fixou a jornada de trabalho desses trabalhadores em oito horas por dia e 44 horas semanais.

Jéssica saiu da região nordeste para a sudeste em um Brasil totalmente diferente do de Val. Atualmente ainda há um processo de migração no Brasil. Não só entre nordeste e sudeste, mas entre todas as cinco regiões do país, com fluxos sul-centro-oeste, sudeste-nordeste, norte-sul etc. E o perfil de grande parte dos nordestinos não é mais como os das décadas anteriores à de 1990. Hoje, muitos nordestinos saem de seus estados com qualificação profissional, para ocupar cargos superiores muitas vezes em grandes empresas. Ou simplesmente mudam do nordeste para fazer mestrado ou doutorado em alguma universidade de outro estado.

Infelizmente o preconceito regional ainda existe. As eleições presidenciais de 2014, 2018 e 2022 demonstraram isso em sua forma mais escancarada, pois, enquanto o sul, centro-oeste e sudeste, em sua maioria, votaram em representantes da centro-direita, os eleitores do norte e nordeste optaram por candidatos de centro-esquerda. Após a eleição de 2018, com a eleição de um candidato de extrema-direita, os ataques de ódio contra nordestinos ficaram até mais frequentes. Mas a xenofobia e o preconceito regional demonstram muito mais sobre quem ataca do que quem é atacado. Afinal, a ignorância é a mãe da intolerância, da xenofobia e do racismo.

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