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“Cidade de Deus” é um filme perturbador?

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“Cidade de Deus” é um filme perturbador?

Sim. “Cidade de Deus” é um filme perturbador. O objetivo dos diretores Fernando Meirelles e Kátia Lund, bem como do roteirista Bráulio Mantovani, era esse, ao adaptarem para as telonas o livro de Paulo Lins.

A trama acompanha a criação, crescimento e desenvolvimento da comunidade Cidade de Deus durante algumas décadas e, em como a criminalidade se criou, cresceu e se desenvolveu por ali. Buscapé, o nosso protagonista, é o responsável por nos mostrar todas as transformações pelas quais a comunidade e a sociedade local passaram. Embora Dadinho/Zé Pequeno seja o personagem mais icônico, é Buscapé quem desempenha o papel mais essencial. Ele é a fonte de informações sobre tudo o que acontece na Cidade de Deus, seja através de suas observações presenciais ou narrações em off. Nesse caso, a narração em off não representa preguiça do roteiro, mas sim uma escolha poderosa para fornecer ao espectador uma visão abrangente dos eventos.

Buscapé, interpretado pelo ator Alexandre Rodrigues

Buscapé aspira a se tornar um fotógrafo profissional e, assim como um fotógrafo, ele captura e comunica os acontecimentos da Cidade de Deus. Sua presença é essencial para a narrativa, pois sem ele, a história poderia ficar fragmentada ou com aspectos não esclarecidos. Buscapé atua como um observador e comunicador cercado pelo caos em todas as direções. A emblemática cena em que ele tenta pegar a galinha representa esse caos e a câmera girando ao seu redor tem um propósito significativo na construção da narrativa do filme, tornando-a uma das cenas mais memoráveis do cinema brasileiro.

Em “Cidade de Deus”, o personagem Dadinho/Zé Pequeno atua como o antagonista principal da história, mas o filme vai além do padrão típico de “protagonista versus antagonista”. Durante toda a trama, Dadinho/Zé Pequeno demonstra esquecimento e falta de interesse em relação ao protagonista, Buscapé. Em diversas ocasiões, ele pergunta repetidamente o nome de Buscapé, mostrando sua indiferença em relação ao morador comum da Cidade de Deus.

Zé Pequeno, interpretado pelo ator Leandro Firmino

Essa abordagem do filme rompe com a dinâmica tradicional de um protagonista destacado em confronto direto com o antagonista. Em vez disso, “Cidade de Deus” explora a realidade caótica do cenário urbano, onde Buscapé representa a grande maioria dos moradores, que procura apenas viver suas vidas cotidianas sem se envolver diretamente com a criminalidade.

“Cidade de Deus” pode ser considerado perturbador para alguns espectadores devido ao uso frequente de palavrões e à extrema violência gráfica retratada na história. Esses elementos impactantes podem causar desconforto, especialmente para aqueles que estão distantes da realidade violenta vivida de lugares como a Cidade de Deus.

No entanto, o filme aborda de forma crítica o ciclo de violência que se tornou comum na comunidade. Para Buscapé e os demais moradores, a violência já se tornou parte da rotina, o que leva a uma espécie de dessensibilização. A trama destaca que até mesmo pessoas trabalhadoras e não envolvidas em atividades criminosas podem acabar se acostumando com a violência à sua volta, muitas vezes por medo de represálias.

Construir a realidade de “Cidade de Deus”, num período cronológico tão longo e com tantos personagens só confirma que roteiristas e diretores tinham um profundo conhecimento sobre o roteiro. Durante todo o filme não tem nada fora de lugar. Assim como o cotidiano de uma comunidade é altamente complexo, o microcosmo do filme também é complexo. E com dezenas de personagens e várias micro-histórias que se conectam dentro da trama principal, o roteiro não se perde em nenhum momento e nem fica cansativo, com tudo se encaixando perfeitamente. E com tantas micro-histórias e personagens, “Cidade de Deus” tem um dinamismo em sua narrativa que é de deixar qualquer um com a boca aberta, diante de tanta competência; tanto pelas escolhas dos roteiristas, dos diretores, ou da equipe de edição e montagem. “Cidade de Deus” é o resultado de uma reunião de acertos.

Os diretores Kátia Lund e Fernando Meirelles

Outro acerto foi a fotografia do filme. Tanto paletas de cores mudam ao longo do filme quanto os enquadramentos. Se no início, a paleta tem cores mais voltadas aos tons bege e marrom, mostrando que a Cidade de Deus é um lugar muito longe do asfalto da praia e do centro da cidade, nas sequências finais as cores são escuras. Se no início do filme, a câmera é mais fixa e tem movimentos mais suaves. Do meio para o final, quando o caos está instalado, os diretores escolheram a opção de filmagem de “câmera na mão”. A confusão visual dá um ar documental para o filme. O uso deste tipo de filmagem e a opção de utilizar uma coloração mais natural dá uma impressão mais realista para o filme. Mesmo sem experiência como cinegrafista, o ator Alexandre Rodrigues, que interpretou Buscapé, foi quem executou a filmagem da cena final de Zé Pequeno. Portanto, a “tremedeira” foi uma mistura de falta de controle do equipamento e mais uma decisão acertada dos diretores. Talvez por isso “Cidade de Deus” perturbe mais do que outros filmes que abordam o tema da violência.

Um dos grandes acertos do filme foi a seleção do elenco. O uso de atores e atrizes profissionais e amadores, adultos e crianças, foi um triunfo. O que o público recebe ao assistir “Cidade de Deus” é um conjunto de atuações muito equilibradas, que sustentam e dão sustentação para o roteiro. Tanto a frase mais famosa do filme quanto o choro de um menino que é atingido com um tiro no pé são igualmente impactantes. A preparação do elenco, embora questionada por alguns, foi extremamente eficiente para que atores que nunca estiveram em frente a uma câmera pudessem entregar atuações tão plenas. Mesmo com artistas experientes como Babu Santana, Gero Camilo, Matheus Nachtergaele, Seu Jorge, Charles Paraventi, “Cidade de Deus” apresentou vários destaques, como Alexandre Rodrigues, Douglas Silva, Phellipe Haagensen, Darlan Cunha, Jonathan Haagensen, Leandro Firmino, Roberta Rodrigues, Renato de Souza, Rubens Sabino, dentre muitos outros.

Lançado em 2002 e aclamado desde então, “Cidade de Deus” já é considerado um dos grandes clássicos do cinema brasileiro. Tudo nele é perfeito: direção, fotografia, roteiro, design de produção, arte, figurino, montagem, edição, som. “Cidade de Deus” é um filme dramático, mas também é um filme de ação policial e suspense. E é perturbador, não porque seja exagerado quando o assunto é violência numa comunidade, mas porque, para nós brancos de classe média, é apenas uma obra de ficção. Mas para milhões de brasileiros moradores de comunidades e favelas, “Cidade de Deus” representa de alguma forma o cotidiano de suas vidas. 

A reflexão que “Cidade de Deus” nos entrega, essa sim é perturbadora.

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